Há muitos hip-hops no hip-hop português

A notícia é da Ypsilon (Público) de 5 de Outubro de 2007.

"Bob Da Rage Sense, Halloween, i2i: três exemplos de como o hip-hop português se multiplica em várias expressões. O primeiro resgata-lhe o activismo fundador, o segundo mostra o que Portugal não quer ver, os terceiros atiram o hip-hop para novas paragens. Mário Lopes

Há uma eternidade que ouvimos falar do "boom" do hip-hop português. Sendo expressão recente em Portugal, quando comparada com as três décadas de vida que conta nos Estados Unidos, onde nasceu, surge aos olhos de muitos como fachada imutável e inamovível. Por trás dela, porém, esconde-se um fervilhar intenso e uma multiplicação de expressões.

Bob Da Rage Sense, Halloween e i2i são três delas. Bob Da Rage Sense, angolano radicado em Portugal, resgata-lhe o activismo fundador e, com "Menos Pão, Luz e Água", junta-se a Valete, Chullage ou Nigga Poison na frente armada do hip-hop português. Halloween, por sua vez, não quer intervir no que quer que seja. Na sua opinião, os MCs falam demasiado do hip-hop e pouco da vida.

É precisamente da vida, da sua e da dos que o rodeiam, que se faz a sua música. "Projecto Mary Witch", o seu primeiro álbum, é uma pedrada no charco. Da Azinhaga do Barruncho, bairro de Odivelas, mostra a Portugal o que Portugal não quer ver.

Por fim os i2i, projecto de dois produtores com carreira feita no techno, Michaelangelo e K. O seu objectivo é simples e ambicioso: expandir as fronteiras estéticas do hip-hop nacional. A verdade é que raramente ouvimos algo semelhante aos cenários apocalípticos do seu álbum "O Tempo Está a Acabar".

Fuse, Chullage, Tekilla, Regula, Criatura e Tom Young são os MCs de serviço.

Três quadros distintos. Três emanações de uma mesma linguagem.

Take 1:

23 de Agosto. Bob Da Rage Sense entra no Maxime, na Praça da Alegria, em Lisboa. Tocará na famosa sala lisboeta essa noite e está impressionado com o local. Investiga-lhe os recantos, elogia a decoração, entusiasma-se quando lhe dizemos que Charles Aznavour já passou por aquele palco.

É fã do cantor francês, cujas canções foram a base para vários momentos de "Bobinagem", o seu primeiro álbum a solo. Bob Da Rage Sense é angolano e a sua família participou na luta pela independência do país. O seu pai foi um jovem quadro do MPLA que estudou na então União Soviética. Os seus tios mantêm-se ligados ao partido do Governo angolano e os seus primos são membros da correspondente juventude partidária. Bob da Rage Sense nunca se filiou.

Aos 10 anos, sabia de cor os nomes de todos os membros do "bureau" político de Angola. Depois cresceu. Cresceu e desiludiu-se. "Sempre tive um ponto de interrogação na minha cabeça", diz-nos. "Comecei a revoltar-me, a fazer perguntas aos meus tios... Até que fui obrigado, por mim próprio, a sair de Angola". Veio para Portugal, onde a mãe já vivia há 18 anos, "por sentir uma revolta interior que não conseguia exteriorizar".

Concretiza: "Estava farto de viver condicionado, de só ter acesso à informação que o Governo quer que tenhamos". O título do seu último álbum forma uma sigla elucidativa: "Menos Pão, Luz e Água". MPLA.

Há alguns meses, o "Jornal de Letras" escrevia que, se Valete é o Che Guevara do hip-hop português, Bob Da Rage Sense será Trotski. A comparação agrada-lhe: "Talvez essa afirmação surja pela minha ligação ao Bloco de Esquerda. Identifico-me com Marx e Lenine, mas a ideologia da revolução permanente de Trotski influencia a maior parte daquilo que faço".

"Menos Pão, Luz e Água" surge como ponte. De um lado, o Portugal onde agora vive. Um país que considera "muito tolerante" mas ao qual critica a forma como aos "luso-obrigados" - é assim que se refere aos imigrantes africanos - são negadas as mesmas oportunidades dadas aos portugueses - "é uma espécie de escravatura moderna, em que as mulheres vão para as limpezas e os homens para as obras".

Do outro lado, Angola, o país a que quer um dia regressar como professor. Será a sua contribuição para o melhorar.

Na adolescência, cresceu rodeado de literatura política e leu tudo a que pôde deitar mão de Marx, Lenine, Mao Tsetung, Trotski ou Noam Chomsky. Chegado a Portugal, o amigo Sam The Kid, um dos produtores de "Menos Pão, Luz e Água", emprestou-lhe um CD de poesia recitada.

Foi a porta de entrada no universo de Miguel Torga e Ary dos Santos, dois dos poetas que mais admira.

"Educação é solução. É isso que tento fazer transparecer nas minhas letras. Os livros são os meus professores mudos e o alimento que me dão é aquilo que tento dar aos outros".

Tudo resumido no refrão de "Frente de Acção": "Esta merda é música da rua, pura/ Revolução falada com a mensagem dura/ A atitude e filosofia segura/ Foge ao teu colete antibalas, fura".

Take 2:

14 de Setembro. Saímos da estação de metropolitano de Odivelas. Caminhamos até um bairro, a Azinhaga do Barruncho, afastado por ruelas estreitas e prédios em construção. Serpenteamos por passeios estreitos até chegar a uma praça. Um ringue de futebol, mesas e bancos de metal coladas à calçada e um pequeno "snack-bar".

Acima o céu. Em volta o cimento dos prédios. Quatro, cinco, seis andares de pintura gasta. Quem nos conduziu até aqui foi Halloween. Este é o seu bairro. É aqui que nascem a maioria das histórias de "Projecto Mary Witch", o álbum que editou em Outubro de 2006 e que se transformou num pequeno fenómeno com o passar do tempo. Não surpreende que assim seja. Halloween é uma voz única. Ele diz que exageramos - e explicará porquê.

Nasceu na Guiné-Bissau e imigrou para Portugal aos quatro anos. Morou primeiro no Jardim da Estrela, no coração de Lisboa. Depois disso, a sua vida foi passada de subúrbio em subúrbio. Pinheiro de Loures, Bons Dias, Santo António dos Cavaleiros, Odivelas.

É deles, dos subúrbios estigmatizados onde mediaticamente nada parece existir para além de rusgas policiais e ocasionais rixas em discotecas, que fala Halloween. Fala como nunca ouvimos ninguém falar em português.

"Há muitos Halloweens por aí, mas a maioria canta em crioulo", explica. "É uma música e uma realidade que fica reduzida aos guetos". Que realidade é essa? Esta que canta em "S. O.S. mundo": "Agente rouba, agente 'paia', a gente mata, a gente burla/ À espera da fezada que nos tire da rua/ Mas nada muda/ Para quem vive rápido a vida é curta".

Nele, o que mais impressiona é a forma como expõe histórias e vidas sem quaisquer romantismos ou moralismos. Impressiona a forma como aquela voz grave e dopada nos impõe as rimas e o ambiente sombrio, quase fantasmagórico, que as rodeia. Impressiona que ouçamos o que ouvimos em "Raportagem".

A citação é longa mas vale a pena fazêla: "'Niggas pensam que estão no ecrã da televisão/ Evita irmão, a minha programação/ Bebé nasce prematura infectada com sida/ Mãe prostituta viciada em heroína/ Recluso enforcou-se com a própria camisa/ Meninas sem mamas já vendem a 'crica'/ Máfia ucraniana mata taxista/ Festa africana acaba em rixa/ Porcos estão de luto e pedem justiça/ Agente Irineu ganhou concurso de balística".

É um relato, não um alerta: "Não quero agitar consciências. Rimo a minha vida e o meio em que cresci. Penso em mim, não no que possam dizer depois".

Halloween quer que a sua música seja um reflexo de si próprio, quer relatar o que o rodeia, com as palavras e o ambiente que o rodeiam. Não é ele que tem de chegar aos outros, são os outros que têm de chegar a ele: "Jesus Cristo não utilizava palavras caras.

Quando queria passar uma mensagem fazia-o numa linguagem simples. O que digo é acessível a toda a gente qualquerpessoa suburbana a percebe.

Podem existir expressões em 'calão' que nem todos apanham, mas isso não é comigo. Se estiverem interessados nesta música, que tentem entrar no nosso mundo. Não temos de ser sempre nós a entrar no deles".

Take 3:

Uma esplanada à beira-Tejo. Fala-se da sessão fotográfica que terminou há pouco e da vontade de, nas fotos, Michaelangelo e K serem mais sombras que figuras claramente visíveis. Nada de surpreendente. Como produtores, não estão habituados a ver exposta a sua imagem.

Michaelangelo, de pai português e mãe americana, nascido nos Estados Unidos. K, irmão mais novo de Tekilla, veterano do hip-hop português. O primeiro tem longa carreira internacional na área do techno, consolidada em editoras como a Labyrinth. O segundo, correndo paralelamente ao irmão, movimenta-se na mesma área. Sob o nome i2i, editaram há cerca de dois meses "O Tempo Está a Acabar", álbum atípico para os dois produtores, álbum atípico para o hip-hop português.

Participam nele Chullage, Tekilla, Fuse, Regula, Criatura e Tom Young - mas nunca ouvimos nenhum deles neste ambiente. Denso e soturno, tem tensão apocalíptica no frio robótico das batidas e divaga pelo espaço em ruídos espectrais e texturas sintetizadas. Hip-hop alienígena e trip hop infernal.

O álbum é um projecto antigo - a ideia recua a 1994, o primeiro trabalho a sério a 2000 -, agora concretizado porque as agendas o permitiram e porque, como diz K, "está aí todo esse 'boom' do hip-hop". "Quisemos também deixar a nossa marca", concede.

Explica que, inicialmente, pensaram num álbum de instrumentais. "Entretanto percebemos que a panóplia de sons que tínhamos encaixava em hip-hop". Michaelangelo avança: "Ele (K) tem muitos contactos através do irmão (Tekilla) e isso abriu muitas portas. Aproximou, por exemplo, o Fuse" - que e, de todos os participantes, o esteticamente mais próximo daquilo que ouvimos em "O Tempo Está a Acabar".

As suas rimas, associações de palavras em ritmo de código informático, são perfeitas para este cenário que os i2i quiserem que fosse "apocalíptico e espiritual", que imaginam prenúncio do fim e, acentua Michaelangelo, "'wake up call' para o Homem como ser cósmico".

Para os restantes MCs, o projecto transformou-se num desafio e numa prova de criatividade. Agora que é expressão solidificada, K considera que é tempo de o hip-hop português dar um passo em frente e demonstrar capacidade camaleónica na adaptação a novos universos. Os i2i ofereceram aos participantes uma plataforma ideal. "Demos-lhes livre arbítrio para fazerem o que quisessem", afirma K.

"Como conceito, tinham apenas o título do álbum". Isso e dois produtores que são melómanos inveterados, gente apaixonada por música que escape à normalidade.

Na esplanada à beira-Tejo, gravador desligado, fala-se do hip-hop progressista da editora Anticon e das maravilhas de Mike Ladd. Ke Michaelangelo indagam sobre duas novas edições dos japoneses Boris e contam como foi ouvir pela primeira vez os drones do Sunn 0))).

"O Tempo Está a Acabar" e o hiphop em Portugal, subterraneamente, cresce em expressão sonora e lírica. Torna-se multifacetado, andróide, miscigenado. Cumpre-se como linguagem em expansão constante e abraça tudo em seu redor. A crueza da realidade, a utopia política, sonhos em tom de pesadelo. Tudo hip-hop."